O setor elétrico brasileiro vem passando por um importante movimento de modernização, a nível legislativo e regulatório. Essa pauta esteve bastante em evidência em 2017, com a abertura pelo MME da Consulta Pública n. 33, sendo muitos dos temas abarcados pela CP discutidos em novos estudos e seminários nos últimos anos.

Um desses temas foi a proposta de separação entre lastro e energia, assunto que teve maior destaque à época da CP devido a se tratar de um conceito pouco conhecido pela maioria dos agentes do setor. Em 2019, com a criação de um Grupo de Trabalho na EPE voltado para a modernização, o tema voltou a passar por ampla discussão e amadurecimento, por meio da abertura da CP n. 83 do MME.

A medida se justifica pelas alterações vivenciadas na matriz elétrica brasileira ao longo das últimas três décadas, oriundas de uma maior preocupação com os impactos ambientais causados tanto pelo alagamento de grandes áreas para construção de usinas hidrelétricas, quanto com a emissão de gases de efeito estufa pelas termelétricas que utilizam combustíveis fósseis. Essas mudanças na política ambiental brasileira se iniciaram com a Constituição Federal de 1988, passando por aprimoramento nos anos 2000, notadamente no primeiro mandato do governo Lula.

As consequências diretas das novas diretrizes ambientais com relação à matriz elétrica foram, em linhas gerais, duas: a inviabilidade prática de construção de hidrelétricas com reservatório de regularização; e o crescimento exponencial da participação de fontes de energia que possuem impacto ambiental baixo ou nulo, principalmente eólica e solar fotovoltaica. A segunda consequência foi também resultado de incentivos do governo, como a conceção de desconto na TUSD/TUST, a criação do Proinfa e a realização de leilões específicos para contratação de energia elétrica proveniente dessas fontes de geração.

Fonte: PDE 2007/2016 e PDE 2029

Essa alteração na matriz tem um impacto operativo relevante, uma vez que a participação de fontes não controláveis passou a ser cada vez maior. Isso significa que o operador do sistema não pode contar com essas usinas para atendimento a variações no consumo de energia elétrica, tendo por consequência um aumento na utilização de termelétricas – mais poluentes e com custo de geração maior.

Por fim, essa situação gera também uma distorção na alocação dos custos de expansão e segurança do sistema, pois a contratação de novas usinas termelétricas se dá exclusivamente por leilões regulados do governo, já que estas não conseguem vender sua energia a um preço competitivo no mercado livre. Com isso, o custo dessa energia mais cara é suportado apenas pelos consumidores cativos, muito embora estes não sejam os únicos beneficiados por ela.

Diante dessa situação – cuja tendência é se agravar cada vez mais – se fez necessário desenvolver uma solução que pudesse não comprometer a expansão das fontes eólica e solar; garantir a segurança de atendimento à carga sistêmica principalmente nos momentos de pico; e alocar corretamente os custos dessa segurança entre todos os consumidores, independentemente do ambiente de contratação. Essa solução se materializou na proposta de separação entre lastro e energia.

A ideia da separação é a criação de dois produtos distintos, um atrelado à contribuição do ativo a um determinado critério de suprimento (lastro) e outro atrelado ao MWh efetivamente produzido por um ativo (energia). Conforme a proposta apresentada pela EPE na CP 83/2019, o lastro poderia ser dividido em dois subprodutos: lastro de produção, que se trata da capacidade de atendimento da carga de forma acumulada ao longo de um determinado período; e lastro de capacidade, que refere-se ao atendimento da carga em instantes de interesse.

Nos termos da proposta, o lastro seria contratado pelo governo por meio de leilões centralizados, com o custo da contratação sendo rateado por todos os agentes de consumo via encargo. Já o produto energia seria negociado de forma bastante similar à atual, com leilões regulados para compra de energia pelas distribuidoras e negociações bilaterais no mercado livre.

Esse mecanismo ainda precisará ser mais bem elaborado e detalhado a partir de amplas discussões envolvendo os agentes do setor, tratando questões como metodologia de quantificação da necessidade de lastro, apuração e revisão do lastro disponível para cada usina, transição do modelo atual para o novo, entre outras. A efetiva implantação também depende diretamente de outros fatores, como a consolidação do programa de resposta da demanda, aperfeiçoamento da regulamentação para prestação de serviços ancilares e a precificação horária da energia (que passou a vigorar oficialmente a partir de 1º de janeiro de 2021).

De todo modo, as bases gerais foram bem aceitas pelo mercado, como se vê nas contribuições dos agentes à CP 83/2019, de maneira que é factível imaginar que não deva haver grandes alterações nesse sentido. É importante notar, então, alguns impactos relevantes que serão sentidos pelos agentes dos segmentos de geração e consumo.

Aos geradores, destaca-se a possibilidade de diversificação de suas receitas, diluindo assim os impactos financeiros relacionados aos riscos inerentes ao negócio. A título de exemplo, hoje caso um gerador tenha sua garantia física reduzida ele terá sua fonte única de receita totalmente comprometida, pois terá menos energia para vender. Já no novo modelo, caso o gerador sofra redução no seu lastro de produção (conceitualmente análogo à garantia física), isso impactará somente a parcela de sua receita atrelada a esse produto, sem impacto em receitas provenientes de lastro de capacidade e venda de energia.

Essa segmentação das receitas também deve beneficiar a participação de novos players no ambiente de contratação livre, como por exemplo as termelétricas a gás natural, que podem atrelar a recuperação dos seus altos custos de geração às receitas provenientes de venda de lastro, se tornando mais competitivas na venda de energia. Por outro lado, a financiabilidade dos projetos poderá ser afetada a depender dos critérios estabelecidos pelo agente financiador para avaliar possíveis receitas advindas de eventual parcela descontratada do ativo.

Para os consumidores, um impacto comum a todos será o pagamento de novo encargo, referente à compra centralizada de lastro pelo governo. Para os consumidores regulados o efeito geral deverá ser positivo, pois o preço da energia deverá ser reduzido e o custo da segurança do sistema deixará de ser suportado somente pelo mercado cativo, sendo rateado entre todos. Já para os consumidores livres e especiais, ainda que o preço da energia neste ambiente também possa sofrer redução, é esperada que essa redução não seja superior ao custo adicional com o encargo de lastro.

Conclui-se, portanto, que a esperada separação entre lastro e energia é uma medida necessária dos pontos de vista operacional e econômico e vista com bons olhos pelos agentes do setor elétrico brasileiro. Contudo, ainda há um caminho bastante longo a percorrer com relação à sua regulamentação e implementação definitiva, e seus riscos e oportunidades merecem ser avaliados com bastante cuidado pelo mercado, sobretudo pelos agentes de geração e consumo.

Artigo redigido por: Michel Leodonio

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